Franca Rame (1929 – 2013)

Jéssica Tamietti de Almeida (2017)

Ninguém para saber melhor de Dario do que Franca. Enquanto viveu foi sua fiel companheira de arte e de vida. Franca Rame nasceu em 18 de julho de 1929 em Parabiago, na província de Milão, onde por acaso sua família de atores ambulantes se apresentava. Os Rame possuíam um teatro itinerante que era montado e desmontado em praças diferentes, e suas representações tradicionais datavam de 1600 e até os anos 1940 continuaram sobrevivendo como atores ou marionetistas ambulantes.

Na melhor tradição da Comedia dell’Arte, eles atuavam tendo como base um repertório que tinha sido estudado e representado há séculos, repletos de situações, diálogos e ações trágicas e cômicas. Franca estreou em cena com oito dias de vida como narra:

 Já com oito dias eu fazia a filha de Genoveffa di Brabante nos braços de minha mãe. A minha infância é um tempo que recordo com comoção. O nosso era um teatro viajante em madeira, belíssimo: ele nos foi requisitado durante a guerra e fizeram dele um hospital militar. Tínhamos um sucesso sempre enorme 365 réplicas por ano[1] (VALENTINI, 1997, p. 36, tradução nossa).

Foi assim neste ambiente teatral que cresceram todos da família, que mais tarde adquiriu um carro chamado de la Balorda (a Pateta), que tinha esse nome por pifar muitas vezes pelas estradas. O carro estava sempre carregado com todo o material cênico utilizado nas apresentações da família. Em Manual mínimo do ator, Fo nos conta da grande sorte que teve sua mulher ao descender de uma família de artistas de teatro. “O fato de esse grupo ter um repertório tão rico em comédias, dramas e farsas permitia que se apresentassem durante meses na mesma praça, mudando de espetáculo a cada noite”.[2] Franca recordava que não havia necessidade de ensaio ou de passar o texto previamente, as tramas eram destrinchadas em quadros e atos e uma espécie de escala era fixada na coxia, “no qual estavam escritas as várias entradas e o argumento de cada cena”.[3] Deste modo, os ensaios não eram necessários, pois, todos da companhia já sabiam de cor variados diálogos sobres temas de amor, ódio, ciúme e outros mais que iam utilizando conforme a situação apresentada, que era combinada com um grande conhecimento de gestos que podiam indicar mudanças de situação, finalização, entre outras coisas, que os permitia assim “improvisar” suas apresentações.

O acesso de Dario Fo ao acervo da família Rame possibilitou que ele conhecesse um vasto repertório teatral, quais eram os gêneros utilizados, como era a montagem e organização dos espetáculos. Todavia os mais relevantes foram os copioni, os roteiros, que além do enredo das histórias lhe revelou “um código secreto dos Rame, que assinalava, sobre os textos, marcas dos tempos em cores diferentes: além das marcas que indicavam o ritmo, havia marcas para as risadas, para os aplausos e para as interjeições do público”.[4] Com Franca e sua família, Dario Fo teve várias lições sobre esse teatro all’improviso da comédia oitocentista italiana, que se construía sobre uma base sólida de situações e desenvolvimentos já experimentados inúmeras vezes, sobre os quais os atores tinham grande domínio, e onde o verdadeiro improviso estava em como mesclar as crônicas e histórias de cada cidade em que se apresentavam com o teatro deles, sem esquecer do jogo com o público que é parte fundamental de toda improvisação.

Todo este amplo patrimônio de tradição ambulante popular, do teatro menor, capaz porém de tocar e entusiasmar um público bem diverso e mais amplo daquele tradicional influenciará profundamente Fo, será um dos elemento de base de sua formação teatral.[5]

Depois desta breve digressão sobre a família de Franca, voltemos aos anos 50, no momento em que se conheceram. Em 1951, nos conta Dario Fo em entrevista, que ele tinha começado a fazer teatro com Franco quando alguns meses depois, na casa de um amigo ele vê pela primeira vez aquela moça loira, bonita, imponente e espirituosa, mas não foi ao vivo e sim por uma fotografia, ficou encantado e curioso e ao perguntar sobre a moça, logo descobriu que ela cantava dançava e atuava.

Quando Franca conheceu Dário ela já tinha sucesso e fazia trabalhos no cinema e no teatro. Franco Parenti tinha chamado Dario para fazer parte do espetáculo de revista com as irmãs Nava, Sette giorni a Milano (1951), do qual Franca também participava. É nesse momento que Dário toma a decisão oficial de deixar a arquitetura e permanecer somente no teatro. Sua mãe Pina o apoiava nessa empreitada, ela que desde sua juventude alimentava uma grande paixão pelo teatro. Paixão que também passou para Jacopo, seu neto, que nasceu em 31 marçode 1955, e que foi autor de muitos textos com os pais e hoje dirige a Libera Università di Alcatraz, fundada em 1981.

Franca foi de extrema importância na vida de Dario Fo. O casamento deles foi também na arte. Ela era responsável por toda edição, curadoria, produção, organização e pelos materiais e arquivos dos dois, que pode ser encontrado em grande parte online.

Além do papel de mulher – condição um pouco mortificante -, minha contribuição à companhia nunca se limitou à de primeira atriz. Desde o início me caiu nos ombros uma função realmente grave: a de ‘contrapontista’, ou seja, exatamente o inverso daquela de cantar em uníssono e dizer: ‘Bravo! Estupendo! Você é um gênio!’ Não. A mim coube uma outra canção: ‘Desculpe mas não está bom. A chave não funciona, os papeis não se conflitam, os personagens não fascinam. O tema se desenvolve de forma inverossímil e, principalmente, pouco ameaçadora. Falta sarcasmo nas investidas políticas!’

Este foi um casamento primoroso até o dia 29 de maio de 2013, quando essa grande estrela dos palcos italianos nos deixou.

com o seu grande intuito teatral e a sua capacidade organizacional será a melhor conselheira do marido, e a administradora da companhia, sempre pronta a levantar Dario de cada dificuldade prática, e encarregar-se dos eventos mais ingratos e cansativos da vida privada e pública.[6]

Neste momento, um parêntese para contar o evento mais ingrato da vida de Franca Rame: em 9 de março de 1973 Franca foi sequestrada em Milão, por cinco homens ligados as organizações neofascistas italianas. Eles a colocaram no carro e a estupraram por horas. Quebraram os seus óculos, queimaram-na com cigarros e chegaram até a cortá-la com uma lâmina. Depois desse ato vil e criminal abandonaram Franca na rua, cumprindo assim a ameaça que vinham enviando por cartas. Em 1975 Franca escreve um monólogo, Stupro, que narra com detalhes o que se passou com ela. Muito forte e emocionante é o texto e sua encenação, porém passaram-se alguns anos até ela admitir que o texto refletia uma situação pessoal. Outros eventos marcantes, porém menos dolorosos, na história de Franca foram sua eleição ao senado em 2006, com mais de 500.000 votos e, depois, sua renúncia, por discordar das políticas do governo de centro-esquerda da época.

Dario Fo lhe dedicou o Nobel e nada foi mais justo, pois não se pode falar de Dario Fo sem mencionar Franca Rame e vice-versa. Eles formaram uma incrível dupla que permaneceu unida por 58 anos.


[1] Ha raccontato Franca Rame in intervista all’Europeo, 21 de nov. 1975: “Già a otto giorni io facevo la figlia de Genoveffa di Brabante in braccio a mia mamma. La mia infanzia è um tempo che ricordo con commozione. Il nostro era un teatro viaggiante in legno, bellissimo: ci fu poi requisito durante la guerra e ne tirarono fuori un ospedale militare. Avevamo un sucesso sempre enorme 365 repliche l’anno” (VALENTINI, 1997, p. 36).

[2] Fo, 2004, p. 19.

[3] Fo, 2004, p. 19.

[4] Veneziano, 2002, p. 123.

[5] “Tutto questo grosso patrimonio di tradizione girovaghe popolari, di teatro minore, capace però di toccare ad entusiasmare un pubblico ben diverso e piú ampio di quello tradizionale influenzerà profondamente Fo, sarà uno degli elementi di base della sua formazione teatrale” (VALENTINI, 1997, p. 38).

[6] “Con il suo grande intuito teatrale e le sue capacità organizzative sarà la migliore consigliera del marito e l’amministratrice della comgania, sempre pronta a sollevare Fo da ogni difficoltà pratica, ad accollarsi i compiti più ingrati e faticosi dela vita privata e pubblica” (VALENTINI, 1997, p. 37).