Dario Fo (1926 – 2016)

Jéssica Tamietti de Almeida (2017)

No início da primavera de 1926, em 24 de março, nasce Dario Fo, em San Giano, na província italiana de Varese, na Lombardia. Filho de Felice Fo, que era chefe da estação ferroviária, e que Fo os descreve como alto, imponente e de belos olhos azuis, e de Pina Rota, pequena e sutil, mas alegre e de grande fantasia.

Tudo depende de onde você nasceu, dizia um grande sábio. E, no que cabe a mim, talvez o sábio tenha acertado em cheio. Tanto que para começar, devo dizer obrigado a minha mãe, que escolheu de me parir em San Giano [São Jano], quase ao lado do lago Maior. Estranha metamorfose de um nome: Jano bifronte, antigo deus romano, que se transforma em um santo cristão, e além do mais suposto protetor dos fabuladores-cômicos.[1]

Além de ter nascido sob a proteção do deus de duas faces, outro fato importante, que poderíamos dizer quase místico, marca o nascimento de Dario Fo, que nos conta[2] que nasceu entre um trem e um obrigado, bem ali na parada que ficava próxima ao lago. Às sete da manhã a moça que foi provisoriamente sua parteira, o segurou pelas pernas como um frango e lhe deu um tapa na bunda, e ele gritou feito uma sirene, no mesmo instante que passava o trem de seis e meia que vinha atrasado. Sua mãe contava sempre que o primeiro berro de Dario Fo foi mais alto do que o apito da locomotiva que passava. Para finalizar essa cena de forma ainda mais mágica, eis que a criança nasce com “camisa”, nome que é dado pelos camponeses quando uma criança nasce na placenta, um sinal de muita sorte no mundo campesino:

Não foi por acaso que nasci com a camisa. É sério. Minha mãe me contava sempre. Vir ao mundo envolto na placenta, na cultura camponesa é considerado um sinal especial, indica uma grande sorte. E em realidade assim foi. A minha era uma boa estrela de verdade.[3]

Quando Giuseppina Manin em O Mundo segundo Fo, lhe pergunta que tipo de criança foi, Dario Fo responde:

Ah um cabrito, naturalmente. Sempre pronto a transgredir as regras, a reinventar a realidade. No campo é mais fácil. Estando em contato com a natureza se aprende a seguir seus ciclos, a conhecer suas leis. […] a grande sorte que desejo a cada criança é de ter uma família estupenda. Como a minha. Onde o dinheiro não abundava, mas afeto, alegria, hospitalidade, sim.[4]

Assim era a família de Dario Fo, o primogênito de outros dois irmãos Fulvio e Bianca. Em sua infância a família se mudou bastante devido à profissão do pai, funcionário ferroviário que vivia sendo transferido de cidade. Fo se recorda dessa época como “uma fuga no Egito”, como nos conta Valentini.[5] Entretanto, todos os lugares onde morou eram vilas próximas às fronteiras e por isso todas tinham um mesmo ambiente cultural fronteiriço, onde convergiam várias histórias, realidades distintas e principalmente tinham a grande presença de uma narrativa não oficial, que era fundamentalmente oral e que o menino Dario pôde vivenciar de perto.

 Fo nos conta que as pessoas tinham o hábito de conversar do lado de fora das igrejas, e muitas vezes aparecia a figura de um fabulador que contava inúmeras histórias oferecendo grande concorrência aos padres. “Eu, sempre admiti, aprendi a base do meu oficio daqueles extraordinários fabuladores”.[6] Os fabuladores giravam pelas pequenas vilas que ficavam em torno do lago Maior contando histórias paradoxais e hiperbólicas, jogando com a realidade e a ficção, e em muitas de suas histórias traziam, como protagonistas, os explorados com os quais os expectadores se identificavam bastante. Todavia, a ironia tinha o papel fundamental de transformar essas histórias em absurdos e fatos irreais, cheias de sátira e comicidade. Os expectadores eram entrelaçados pelas palavras desses artistas e se deixavam ficar por horas a fio a escutá-los. Como já foi mencionado, esta foi por Fo uma verdadeira escola de arte e cultura popular que ele pôde vivenciar em sua infância e juventude, ao ouvir a mesma estória ser recontada uma dezena de vezes em diferentes momentos, para públicos e em lugares distintos. Assim sendo, ele pôde perceber que o jogo consistia em adaptar a história às diferentes situações, mesclando-a com os acontecimentos da vida real, com os fatos locais.

Fo também teve em sua família uma grande inspiração: seu avô materno, um verdureiro que vivia contando histórias para atrair a clientela ao rodar com seu carroção por toda a região do lago. Foi nessas viagens com o avô que o pequeno Dario Fo aprendeu as primeiras e grandes lições sobre os ritmos narrativos.[7] O avô era especialista em contar fábulas grotescas com grandes tiradas, geralmente contos fantásticos e obscenos, nos quais misturava os acontecimentos e as pessoas de cada região, fazendo rir e enrubescer os camponeses, exercendo deste modo a função de um jornal satírico que lhe rendeu o apelido de Bristìn, nome dado a uma semente de uma espécie de pimentão, que era utilizada junto com outros condimentos no preparo da comida pra deixá-la picante.[8]

Portovaltravaglia foi a cidade em que a família Fo se estabeleceu e na qual Dario passou a juventude. Era uma colônia de sopradores de vidro, um ofício muito difícil, mas que justamente por esse motivo pagava bem a quem exercia essa profissão. Acontece que logo o trabalhador ficava doente de silicose, ou pouco a pouco ia enlouquecendo por respirar os gases tóxicos e o pó da fabricação do vidro. Portanto, era uma das cidades que possuía mais loucos em toda a Itália e quando passou a viver nela Fo teve a oportunidade de observar o louco com familiaridade, pois este se tornou uma figura muito presente em seu cotidiano. O louco é um personagem fundamental na cultura popular, estando sempre presente em suas histórias. “Um outro elemento ‘irregular’ é o uso, constante no teatro de Fo, da figura do louco como personagem que pode se permitir dizer as verdades mais desagradáveis e escabrosas”.[9]

 Em uma entrevista,[10] Dario também nos conta que os sopradores de vidro vinham de grande parte do mundo e que assim, na escola, ele teve a oportunidade de estudar com muitos estrangeiros, tendo contato com uma grande variedade de línguas, culturas e histórias.

Na adolescência, junto com o irmão dois anos mais novo, Dario começa a representar nas vilas histórias populares com marionetes. Vem desta época também a paixão pela pintura e pelas artes figurativas. Aos quatorze anos, antes de explodir a guerra, o jovem decide estudar em Milão, no Liceo artístico de Brera.

Fo já tem completos quinze anos quando se inicia a Segunda Guerra Mundial, em setembro de 1939. Retornando à cidade de sua família, meio aturdido ainda com sua mudança para Milão, encontra um ambiente em Portovaltravaglia bem diferente do primeiro: sem piadas nem bêbados, nem estórias fantásticas, mas sim, o início de uma resistência partigiana onde seu pai, sempre socialista, toma parte. Dario Fo foi chamado, como todos os jovens da sua época, para se juntar ao exército italiano e relata sobre esse momento de sua vida:

Quando fui convocado, conta Fo, tinha diante de mim poucas possibilidades. Ir com os partigianos não era fácil porque naquele momento os bandos da zona eram desmantelados pelo contínuo rastreamento dos alemães. Escapar para a Suíça se tornou muito complicado: se te encontravam te reconduziam até a fronteira. Preferi escolher uma posição de espera e tentar me livrar da leva com um truque.[11]

 O truque foi se alistar em Varese onde, por falta de canhão e munição, os recrutas eram expedidos para casa com licenças por tempo indeterminado. Porém, o governo logo se deu conta da situação e resolveu o problema, ou no caso de Fo, acabou com sua solução e todos foram convocados novamente. Chegaram até mesmo a presenciar um discurso do próprio Mussolini. Dario, não obstante, consegue se safar outra vez, fazendo para si e para mais quatro companheiros, licenças alemãs falsas com todos os timbres e sigilos. Fo, então, teve que vagar alguns meses longe de casa, enquanto seu pai era preso pelos republicanos, e deste modo sem ter uma casa para retornar ficou dormindo nos vales, sempre vagando. Dario Fo não teve contato direto com a luta partigiana, porém não aceita ser chamado de republicano, como assim o chamou um jornal italiano: “me parece um insulto a todos aqueles anos de sofrimento, aqueles pelos quais teve que passar minha família, os meus amigos, as pessoas da minha vila”.[12] Já com vinte anos, ao final da guerra, Dario Fo se entusiasma pela descoberta da política. Nesta época ele já havia retornado a Milão onde, em 1945, tinha se inscrito no curso de arquitetura.

Dario foi morar em uma modesta casa de um bairro ferroviário. Nestes primeiros meses do pós-guerra, em Milão, se travavam violentíssimas discussões sobre pintura, cinema, as artes de modo geral em relação a seus papeis sociais. Neste ambiente nascia O Piccolo Teatro de Grasci e de Strehler, e até Einaudi, o editor mais prestigioso de esquerda, transfere sua editora de Torino para Milão. Ocorre então uma crise da arquitetura com o início da especulação imobiliária, e tudo aquilo que era demandado de um arquiteto era que se esquecesse do que estava aprendendo na universidade. Isso incomodou profundamente o ainda estudante Dario Fo.

Nessa época, sua ligação com o teatro era de puro jogo e divertimento. Fo já realizava algumas histórias e encenações que aprendera no lago para os amigos e, aos poucos, foi passando do teatro improvisado ao palco cênico, do hobby para o profissionalismo.

No verão de 1950, Dario Fo resolve procurar Franco Parenti (1921-1989), um ator já reconhecido na época, e lhe perguntar se podia participar de sua apresentação. Disse ainda que era muito bom em contar histórias e lhe mostrou um texto escrito por ele sobre Caim e Abel. Franco aceitou sua proposta e deixou que ele se apresentasse. Dario, por sua vez, encenou o monólogo Il pòer nano, obtendo grande sucesso com o público. Entretanto o jovem Dario Fo ainda não valorizava seu trabalho e chegou a oferecer a Franco por pouco dinheiro seus canovacci, alegando que não estava em boas condições financeiras. Franco não aceita a oferta, mas convida Fo para se apresentar em todos os seus espetáculos. Começa, assim, uma boa parceria que vai se prolongar por alguns anos. Em 1952 o seu prestígio começa a aumentar quando recebe o convite para trabalhar na rádio. Ele se torna então o popular poer nano em uma série de monólogos, nos quais arruinava paradoxalmente os mitos da história e da literatura canônicos que eram estudados nas escolas:

Era uma alegoria e as pessoas entendiam como dimensão de classe. Como denúncia dos privilégios do herói, seja este Abel, Hamlet ou Júlio César, ao qual se dá tudo, todas as qualidades exteriores para o contrapor ao povo, ao camponês que não possui todas estas fortunas, que não é belo de se ver, sempre suado, cansado, da cor da terra”[13]

A rádio serviu para que ele pudesse afinar sua representação enriquecendo os tons, os ritmos, pois a recitação radiofônica não lhe permitia se apoiar em seus gestos. Nessa mesma época, Dario Fo vai aprofundando sua relação com Franca Rame, que tinha conhecido no palco de Sette giorni a Milano (1951), e com quem se casa em junho de 1954.

Quando Dario pediu Franca em casamento, eles já estavam na turnê de Dito nell’occhio, que estreou no verão de 1953. Escrito por Dario Fo, Franco Parenti e Giustino Durano (1923-2002), o espetáculo se definia como anti-revista, que tinha o objetivo de contar em esquetes a história da humanidade, porém enfiando um dedo no olho da história tradicional, arruinando assim os esquemas clássicos, os mecanismos dos mitos impostos pelo fascismo: o herói, a família, a pátria, a cultura como um produto intelectual entre outros mais.

Este era o primeiro espetáculo em que prevalecia a mímica em sua execução, e isso foi logrado graças ao bom trabalho de Jacques Lecoq (1921- 1999), importante ator, mímico e professor de atuação francês considerado referência no “teatro do gesto”, nome de seu livro[14].Sendo professor de educação física trabalhava a reeducação corporal e o movimento no teatro. Os oito anos que passou na Itália marcaram definitivamente seu caráter de pesquisador culminando na experiência junto ao Piccolo Teatro di Milano, que chegou a dirigir por dois anos. Em Paris funda em 1956 a École Internationale de Théâtre Jacques Lecoq.

Em Dito nell’occhio, o francês consegue imprimir nos treze atores uma rigorosa unidade em busca de uma representação não naturalista que nunca tinha sido vista em toda Itália. Dario Fo era brilhante e foi quem mais tirou proveito deste encontro, pois aprendeu inúmeras técnicas com o mestre francês como, por exemplo, utilizar melhor o espaço cênico, aprender estímulos que geram o riso, os tipos diferentes de risadas, caminhadas e gags que permitem a um ator mímico se transformar sem ajuda de nenhum outro aparato cênico que não seja seu próprio corpo, e até mesmo o grammelot – que ficou muito conhecido com Dario Fo em sua execução de Mistero Buffo – era um exercício da escola de Lecoq. A parceria se estende por mais alguns espetáculos até que divergências no trabalho fazem com que cada um siga seu caminho.

Dario Fo então se muda para Roma e se aventura no cinema. Todavia, desde o início sua relação não foi fácil e Dario Fo viveu dois anos muito infeliz em Roma, uma grande cidade com seu ritmo caótico. Depois do grande sucesso de Franca no Teatro Arlecchino de Roma, decidem então, voltar a Milão e para seu retorno aos palcos Fo escolhe a estrada da farsa. Sobre as farsas Dario Fo explica “foram para mim um exercício importantíssimo para entender como se escreve um texto teatral. Tinha aprendido a desmontar e a remontar os mecanismos da comicidade, a escrever diretamente para a cena, sem nenhuma passagem literária”.[15]

 Em 1956, fundam a companhia Fo-Rame, na qual Dario é autor, ator, diretor, cenógrafo e figurinista. E a partir desse momento Franca assume a organização geral, sua irmã Pia a costura. Enrico Rame e Fulvio Fo também participam na organização e administração mantendo assim tudo em família. Entre os espetáculos dessa época podemos destacar Comica finale (1957) e Gli Arcangeli non giocano a flipper (1959).

A partir de 1960, Dario Fo conquista fama internacional e começa também a atingir o grande público italiano, uma vez que estreia Canzonissima,em 12 de Outubro de 1962, na RAI, canal televisivo italiano estatal. Porém o programa teve curta duração, indo ao ar apenas oito vezes, em função da decisão de Dario e Franca de abandoná-lo depois das várias intervenções de censura por parte da emissora. No programa, Fo realizava monólogos satíricos falando da máfia, das doenças profissionais, sobre segurança do trabalho, etc., o que provocou um ataque pó parte dos jornais, de políticos e empresários. O público adorava os programas, mas as críticas fizeram com que os textos, que já tinham sido aprovados, passassem a ser revistos e censurados palavra por palavra, como conta Fo a Valentini (1997) sobre as censuras que tinham cores distintas: vermelhas, azuis e pretas, realizadas nessa ordem. Assim, ao longo dos programas, a situação foi se agravando até que na noite do dia 29 de novembro a anunciadora da emissora comunicou que Dario Fo e Franca Rame tinham se retirado de Canzonissima e por muitos anos os nomes de Fo e Franca não puderam ser pronunciados na TV italiana.

Retomam assim com o trabalho no teatro e em 1964 estreiam Settimo: ruba un po’ meno!  que denuncia a corrupção, e no ano seguinte lançam La colpa è sempre del diavolo (1965), comédia que é ambientada na idade média em Milão e possui cenas de assassinatos truculentos com diabos e bruxas.Essa peçainaugura o que mais tarde vai ser o método de Mistero Buffo, com a diferença de que a primeira é completamente fictícia e não se trata de uma reconstrução de uma situação jogralesca que já existira, como ocorre no segundo espetáculo. A companhia teatral Fo-Rame continua seu trabalho até 1968, quando, em virtude dos acontecimentos políticos daquele ano, decidem mudar radicalmente a estrutura de seu teatro.

A dupla renuncia ao teatro italiano burguês e funda a Associação Nuova scena, composta por outros 40 atores organizados como um coletivo de teatro independente, que percorria toda a Itália representando seus textos a um público popular, completamente diverso do público ao qual tinham o costume de se apresentar anteriormente, desta vez atuando em fábricas, cinemas, praças. Franca teve grande parte na dissolução da antiga companhia e passa a ter um papel mais independente dedicando-se em tempo integral ao trabalho teatral e político. “O ponto de partida no interior do Nuova scena, como foi dito, era aquele de abolir os papeis tradicionais do teatro […] e de encarregar a todos de iguais fetiches e responsabilidades, não só pelas escolhas gerais, mas também no palco cênico”.[16]

Aproveitando-se do mês de férias dos componentes do elenco, no verão de 1969, Dario aprofunda sua pesquisa dos Evangelhos Apócrifos e começa a experimentá-los em leituras na Casa do Popolo di Cusano Milanino, em setembro, e na universidade, antes da estreia oficial em outubro no Teatro Ariston. Mistero Buffo suscitou grandes debates dos estudiosos em cultura popular e veio para demonstrar que as classes subjugadas apresentavam sim uma rica tradição cultural com grande autonomia criativa, não se tratando apenas de imitação das obras de arte dominantes. Nessa sua obra capital, Fo reúne a crítica e diversão, atualiza os mistérios e parábolas cristãos, fazendo sátira de personagens passados poderosos, para atingir a realidade, o presente do espectador que pode, então, perceber as contradições e repressões do seu mundo atual. Ao misturar pesquisa e imaginação, Fo reconstrói por meio de textos ligados à cultura popular uma Idade Média, em grande parte desconhecida, e reatualiza a irreverência original da cultura grotesco-satírica que se apoia no fenômeno da carnavalização, como nos relata Bakhtin, que apresentaremos melhor no capítulo seguinte.

Como afirmamos, nesse seu trabalho Fo retoma os artistas anônimos do passado e do presente que possuem ou possuíram essa árdua missão de portar a palavra levando-a para o povo gerando conhecimento. Desse modo realiza-se a história: por meio da diversão e com generosas porções de crítica social; esse aspecto satírico, porém, fez com que muitos jograis fossem perseguidos, tanto na Idade Média quanto nos tempos modernos como aconteceu com Fo e Franca Rame, que foram ameaçados e censurados inúmeras vezes ao trabalhar em seu teatro questões de cunho político-sociais.

Segundo Dario Fo em Valentini (1997) os jograis seriam artistas oriundos do povo, que representavam para o povo, ocupando as praças e ruas, fazendo palhaçadas e realizando tiradas grotescas contra os poderosos. Fo (2008) relata também que o teatro na Itália sempre foi o principal meio de expressão, comunicação, provocação, agitação e veiculação de ideias. O teatro medieval cumpria a função de um jornal falado, narrando os acontecimentos e circulando, de maneira crítica, a informação. Nesse contexto, cabia ao jogral o ato de contar de vila em vila as histórias e injustiças que aconteciam. Entretanto, essa postura crítica foi motivo de perseguição feroz aos jograis. O outro aspecto interessante abordado por Fo é referente às penas sofridas por esses artistas, pois aqueles que porventura sobreviviam às perseguições e mutilações – há relatos de muitos artistas que tiveram suas línguas cortadas – eram submetidos a uma operação mais sutil e não menos violenta, tendo seu modo de se exprimir, de certo modo, absorvido e naturalizado pelas classes dominantes nas grandes cortes. Como consequência, o que era o meio de comunicação e veiculação de ideias do povo passa a ser reduzido e banalizado em mero divertimento para os nobres.

A ideia de Mistero Buffo surge da carência de estudos sobre a cultura popular medieval. Dario foi espectador dessas tradições na região onde morava, foi coetâneo de fabuladores que cantavam e contavam histórias nos vales e no Lago Maggiore. Fascinado com a perícia e arte destes, Dario se propõe a investigar direto das fontes, dentro da literatura submersa, na oralidade vivenciada, aquilo que a academia muitas vezes ignorou, desprezou e negou.

Uma obra de arte nascida de baixo, pela coletividade. Assim como a pesquisa histórica, teatral e humana de Dario, que desde sempre foi remexer na zona de sombra da história que é colocada à parte da tese oficial, ocultamente escondida pelo poder. Um tesouro escondido de cantos populares, invenções de jograis, brilhantes afrescos, catedrais esplendorosas. Cada escrito, pintura, esculpido por mãos destinadas a se manterem no anonimato. Obras-primas visíveis, audíveis, agradáveis para todos, mas que nem todos souberam ou quiseram ler, ouvir, ver. O olho de Fo, usando a mesma chave usada por esses artesãos – artistas sem nome, foi capaz de abrir os códigos ocultos, combinar com genial articulação palavra e imagem, significado e significante. Como os cantadores do passado, ele, jogral e artesão de hoje conta e pinta, ilustra e comenta, em uma linguagem muito original alta e baixa ao mesmo tempo. Simples como aquela dos contos populares, profunda culta como um tratado de história. Sempre prodigiosamente acessível a todos.[17]

Mistero Buffo foi sendo afinado em anos de atividades e representações, pois Fo sempre o sustentou em paralelo com seus outros espetáculos: “Nesse progredir do espetáculo conquistou uma importância sempre maior a pantomima, a pausa, a improvisação”.[18] Dario também foi acrescentando os grammelot às apresentações dos mistérios e outras histórias das tradições populares como as greco-romanas antigas. Dario passou a aperfeiçoar também seus prólogos para que o público pudesse entender melhor o que se passava no dialeto. Valentini (1997) define o espetáculo como total, uma vez que consegue chegar à essencialidade com um ator de roupas simples e sem mais aparatos, que consegue fazer o público ver e sentir aquilo que narra em uma comunicação direta, que segundo a jornalista é a origem do teatro.

Em 1970, o casal, em virtude de divergências políticas, deixa o Nuova Scena e funda o Collettivo Teatrale La Comune.

Em 1997, Dario recebe o prêmio Nobel da Literatura justamente por seu trabalho em conjunto com a sua mulher, Franca Rame, pelos estudos das tradições dos jograis medievais. Na justificativa do prêmio, o júri afirma que “na tradição dos jograis medievais ele havia fustigado o poder e restituído dignidade aos humildes” (BERNARDINI, 1998, p. 26). Por sua vez, Dario dedicou o prêmio a sua esposa, sem a qual não poderia ter feito seus trabalhos, e a todos seus companheiros anônimos que foram perseguidos e morreram para levar adiante essa profissão. Palavras de Fo:

Tinha sido coroado como jogral e esse prestigioso prêmio queria dedicá-lo a todos os meus colegas anônimos, contadores de histórias, aos saltimbancos de todos os tempos, àqueles que eram perseguidos e queimados na Idade Média, e àqueles que ainda hoje têm que trabalhar muito para poder continuar o seu ofício.[19]

Dario Fo é jogral de seu tempo, brinca e faz com que a plateia se divirta e ria de coisas sérias, tocando nas antigas e sempre delicadas questões sociais e políticas através do ridículo, do grotesco e do popular. De fato, o riso para Dario Fo é uma arma e é através dele que podemos nos distinguir dos animais; nossa maneira de rir nos diz muito sobre quem somos: “Existe risada e risada. A cultura do rir indica a qualidade de um povo”.[20]

Como suas obras mais significativas, foram citadas pela academia: Mistero Buffo (1969), Morte accidentale di um anarchico (1970), Non si paga, Non si paga, (1974), Clacson, trombette e pernacchi (1981) e seu último espetáculo antes do prêmio, Il diavolo con le zinne (1997).No ano seguinte, na França, o Ministério da Cultura concedeu a Fo a Comenda das Artes e das Letras e, em março de 2005, Dario recebeu da Universidade Sorbonne, Paris, o título de Laurea Honoris Causa.

São 90 anos de história, do primeiro minuto de vida até seus últimos dias, em que Dario exerceu seu fazer artístico, contínuo, incansável, pintando inúmeros quadros, apresentando seus monólogos pelo país, escrevendo livros, contando suas histórias. O mestre Dario Fo nos deixou quando ainda não tínhamos finalizado nossa pesquisa, no dia 13 de outubro de 2016, coincidentemente dia em que era concedido o Nobel da literatura do ano, prêmio do qual ele fora vencedor em 1997. Para nossa tristeza se foi o artista mais completo do século XX e do início do século XXI, todavia sua obra permanece. São mais de 47 peças, três filmes, mais de 60 canções e de 80 espetáculos dirigidos por todo o mundo.


[1] “Tutto dipende da dove sei nato, diceva un grande saggio. E, per quanto mi riguarda, forse il saggio ci ha proprio azzeccato. Tanto per cominciare, devo dire grazie a mia madre, che ha scelto di partorirmi a San Giano, quasi a ridosso del Lago Maggiore. Strana metamorfosi di un nome: Giano bifronte, antico dio romano, che si trasforma in un santo cristiano, per di più presunto protettore dei fabulatori-comici. (Da “Il paese dei Mezaràt”, 2002). Disponível em: http://www.archivio.francarame.it/bioDario.aspx. Acesso em 1 de novembro de 2016.

[2] Disponível em: (http://www.archivio.francarame.it/bioDario.aspx) apud “Il paese dei Mezaràt”, 2002. Acesso em 1 de novembro de 2016.

[3] “Non per niente sono nato con la camincia… Sul serio. Mia madre lo raccontava sempre. Venir fuori avvolto nella placenta, nella cultura contadina è considerato un segno speciale, l’indice de una grande fortuna. E in realtà cosi è stato, la mia era una stella buona davvero” (FO; MANIN 2008,p. 17).

[4] “Ma um monello, naturalmente. Sempre pronto a trasgredire le regole, a reiventare la realtà. In campagna è più facile. A contatto con la natura si impara a seguirne i cicli, a conoscere le leggi. […], la grande fortuna che auguro a ogni bambino è di avere una famiglia stupenda. Come la mia. Dove i soldi non abbondavano, ma l’affetto, l’allegria, l’ospitaliatà, sì“ (FO;MANIN, 2008, p. 19).

[5] Valentini, 1997.

[6] “Io, l’ho sempre amesso, ho imparato le base del mio misteire da quegli straordinari fabulatori” (FO; MANIN, 2008, p.72).

[7] Disponível em http://www.archivio.francarame.it/bioDario.aspx Acesso em 1 de novembro de 2016

[8]” Disponível em http://www.archivio.francarame.it/bioDario.aspx Acesso em 1 de novembro de 2016

[9] Un altro elemento “iregolare” è l’uso, constante nel teatro di Fo, della figura del pazzo come personaggio che può permettersi dire le verità piú sgradevoli e scottanti” (VALENTINI, 1997, p.86)

[10] Entrevista em para LaFeltrinelli Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=SoEca3M9xOY

Acesso em 1 de novembro de 2016

[11] “Quando mi trovai richiamato, racconta Fo, avevo davanti poche possibilità. Andare coi partigiani non era facile perché in quel momento le bande della zona erano smantellate per i continui rastrellamenti dei tedeschi. Scappare in Svizzera era diventato molto complicato: se ti trovavano ti riaccompagnavano alla frontiera. Preferii scegliere una posizione di attesa e cercare di liberarmi della leva con un trucco” (VALENTINI, 1997, p. 24).

[12] “Mi sembra un insulto a tutti quegli anni di sofferenza, a quel che aveva dovuto passare la mia famiglia, i miei amici, la gente del mio paese”. (VALENTINE, 1997, p. 25)

[13] “Era una alegoria e la gente capiva come dimensione di classe. Come denuncia dei privilegi dell’eroe, sia esso Abele che Amleto e Guilio Cesare, al quale si da’ tutto, tutte le qualità esteriori per contrapporlo al popolo, al contadino che non ha tutte queste fortune, non è bello a vedersi, è sempre sudato, affaticato, del colore della terra“ (VALENTINI, 1997, p. 36).

[14] Le Théâtre du geste. Mimes et acteurs. Sous la direction de (O Teatro do Gesto. Mimos e Atores. Sob a direção de) Jacques Lecoq. Paris: Borbas, 1987.

[15] “erano stati per me un’esercitazione importantissima per capire come si scrive un testo teatrale. Avevo imparato a smontare e a rimontare i meccanismi della comicità, a scrivere direttamente per la scena, senza nessum passaggio letterario” (VALENTINI, 1997. p. 58).

[16] “il punto di partenza all’interno di Nuova Scena, come si è detto, era stato quello di abolire i ruoli tradizionali del teatro […] e di caricare tutti di uguali fetiche e responsabilità, non solo per le scelte generali ma anche in palcoscenico” (VALENTINI,1997, p. 106).

[17] “Un’opera d’arte nata dal basso, dalla colettività. Proprio come la ricerca storica, teatrale umana, di Dario. Che da sempre è andato a frugare in quella zona d’ombra della storia messa da parte dai testi ufficiali, occultamente celata dal potere. Un tesoro nascosto di canti popolari, invettive di giullare, smaglianti affreschi, cattedrali stupefacenti. Ciascuno scritto, dipinto, scolpito da mani destinate a restare anonime. Capolavori visibili, ascoltabili, godibili da tutti, ma che non tutti hanno saputo o voluto leggere, vedere ascoltare. L’occhio di Fo, usando la stessa chiave usata da quegli antichi artigiani-artisti senza nome, ne ha saputo aprire i codici celati, unire con geniali incastri parola e immagine, significato e significante. Come i cantastorie d’antan, lui, guillare e artigiano di oggi racconta e dipinge, illustra e chiosa, in un originalissimo linguaggio alto e basso allo stesso tempo. Semplice come quello dei racconti popolari, profondo colto come un trattato di storia. Sempre prodigiosamente accessibile a tutti” (FO;MANIN, 2008, p.30).

[18] “In questo progredire dello spettacolo ha aquistato un’importanza sempre maggiore la pantomina, la pausa, l’improvisazione” (VALENTINI, 1997, p. 126).

[19] “Ero stato incoronato in quanto giullare e quel premio pestigioso volevo dedicarlo a tutti i miei anonimi colleghi, ai cantastorie, ai saltimbanchi di ogni tempo, a quelli che nel Medioevo venivano perseguitati e bruciati e a quelli che ancora oggi tanto devono faticare per poter portare avanti il loro mestiere” (FO;MANIN, 2008, p.14).

[20] “C’è risata e risata. La cultura del ridere indica la qualità di un popolo” (FO;MANIN, 2008, p. 81).