Amanda Bruno de Mello (2019)
Os bufões do proletariado[1] (até 1977)
Dario Fo nasceu em 1926 em San Giano, Franca Rame em 1929 em Parabiago, ambos na Lombardia, no norte da Itália. Ela vinha de uma família de atores que tinha uma companhia itinerante e se dedicava ao teatro desde os oito dias de vida, quando estreou no palco, enquanto a relação de Fo com o teatro começa com a admiração que tinha pelos contadores de histórias populares durante a infância e a adolescência (ARCHIVIO, s. d., online).
Em 1940, Dario se muda para Milão para estudar na Academia de Brera e em 1945 se inscreve no curso de arquitetura, que não chegou a concluir. Além dos estudos e do trabalho em um escritório de arquitetura, começou a atuar também como cenógrafo e a escrever os seus primeiros textos teatrais. Em 1950, Franca também se muda para Milão, para atuar na comédia “Ghe pensi mi”, da Companhia Tino Scotti. No ano sucessivo o grupo muda de formação, passa a se chamar Compagnia Nava-Parenti e entra em cartaz com a revista Sette giorni a Milano, que contava com Franca e Dario no elenco, este tendo escrito um dos monólogos da peça. É nesse contexto que os dois se conhecem, se apaixonam e firmam a sólida parceria profissional que duraria até a morte de Franca, em 2013. Dario a seguiu em 2016 (ARCHIVIO, s. d., online).
Retomando a ordem cronológica dos eventos, a mudança para Milão, tanto para Fo (ARCHIVIO, s.d., online) quanto para Rame (RAME, 2013) significou também uma aproximação às ideias políticas e culturais da esquerda. É importante lembrar o momento político vivido pela Itália à época.
A partir do fim da Segunda Guerra Mundial, o país viveu um período de grande tensão e polarização política, sob influência da Guerra Fria. A tradição italiana de esquerda continuava forte, mas havia também uma direita forte, aliada à Igreja, que também tinha como objetivo impedir que os comunistas chegassem ao poder. A Itália agrícola ainda era atrasada em relação às cidades e ao campo das outras potências europeias. Apesar da república recém-conquistada, votada em um referendo em 1946, as instituições ainda mantinham estruturas e aparelhos forjados na época do fascismo, o que, segundo Crainz (2012), oferecia forte ameaça à democracia.
O trabalho dos teatrólogos italianos parece ser indissociável da época em que viveram e dos debates e confrontos políticos da segunda metade do século XX na Itália. Já a partir de 1953, com o espetáculo Il dito nell’occhio (“O dedo no olho”, em tradução nossa), começam a sofrer com a censura, problema que acompanhará o trabalho do casal pelas décadas seguintes. Embora o espetáculo não tenha sido proibido, nem tenha sofrido cortes, foi alvo de uma campanha contrária encabeçada pelo próprio ministro do espetáculo à época, Giulio Andreotti. Foram pregados cartazes nas igrejas com o objetivo de demover os fiéis de irem assistir à peça (ARCHIVIO, s.d., online).
Dario e Franca se casam em 1954 e no decorrer da década começam a se firmar como profissionais do teatro na cena nacional italiana, ele como ator, autor e diretor, ela como atriz. Nesse período expandem o próprio campo de atuação para o rádio e para o cinema, meios em que também alcançam bastante reconhecimento, o que culmina, em 1962, no convite da RAI para que apresentem 13 sketches na Canzonissima, o programa de maior audiência da emissora, que ia ao ar às noites de sábado. Todos os episódios tinham sido previamente aprovados pelo diretor da emissora, mas a repercussão de alguns temas políticos, especialmente de um episódio sobre a máfia, que à época ainda conseguia impor grande silêncio, é muito polêmica (ARCHIVIO, s.d., online). Um episódio sobre um acidente de trabalho e a relação entre patrão e trabalhadores na construção civil estava previsto para ir ao ar no dia em que começaria uma greve dos pedreiros, o que fez com que a RAI sugerisse vários cortes ao texto que já tinha sido aprovado. O casal não aceitou os cortes propostos e, com isso, foi forçado a deixar as apresentações antes do fim do contrato, o que fez com que passassem mais de uma década longe da televisão (RAME, 2013).
O que poderia ter parecido o anúncio do fim da carreira promissora dos dois parece ter sido, na verdade, a primeira grande ocasião de afirmar que não estavam dispostos a abrir mão dos princípios que guiavam as suas escolhas estéticas e políticas em nome de espaço na cena artística convencional ou de segurança pessoal. Fo e Rame continuariam a desrespeitar tentativas de censura e boicote aos espetáculos que criavam, sem medo de denunciar os criminosos e corruptos, mesmo que isso trouxesse perigo para o casal. Após o episódio que denunciava a máfia na Canzonissima, a organização criminosa chegou a ameaçar de morte Jacopo, filho do casal, que na época tinha apenas seis anos (FARRELL, 2013).
Se o imediato pós-guerra já tinha sido um período de acirramento político, na década de 1960 o clima de disputa se intensifica e fica materialmente mais violento, especialmente após os movimentos de 1968, que também na Itália eclodem primeiro entre os estudantes e depois também entre os operários (SATTA, 2016). Uma das causas da eclosão de tais movimentos parece ter sido o descompasso entre o chamado “milagre econômico” do fim dos anos 1950 e início da década de 1960 e mudanças reais na vida dos cidadãos italianos. Se, por um lado, como indica Crainz (2012), os indicadores econômicos médios aumentaram, o que poderia indicar que a Itália estava em um caminho de modernização, por outro, a população continuava a sofrer com as desigualdades sociais, com a falta de modernização nas instituições, na política e na moral italiana, sempre influenciada pelo peso da presença da Igreja Católica no país.
Por um lado, os movimentos de 1968-1969 abrem um período de debates fundamentais tanto nos movimentos populares como, talvez justamente pela pressão popular, na política parlamentar oficial. Por outro, porém, é inaugurada uma temporada sombria de atentados violentos tanto por parte de grupos de extrema-esquerda como por parte de grupos neofascistas, até hoje não totalmente elucidados (SATTA, 2016).
É nesse contexto que Fo e Rame tomam a decisão de abandonar definitivamente o teatro que Fo chama de “normal”, comercial, chamado também de burguês por militantes de esquerda da época. Franca conta a Joseph Farrell os motivos da decisão:
Sempre dávamos desconto para os estudantes e para os operários, mas o nosso público continuava sendo burguês e não entendia a sátira, não percebia que estávamos tirando sarro deles. O Teatro Manzoni foi o último teatro onde nos apresentamos, aqui em Milão. Havia muita gente, havia tudo o que era necessário, mas nós estávamos insatisfeitos. Um dia no verão meu marido disse: “Por que não vamos embora do teatro normal”? Ele estava me propondo o mesmo que eu sempre tinha feito com a minha família, então para mim estava ótimo. Foi em 1968.[2]
Com essa decisão, o casal continuou o movimento de aproximar o próprio fazer teatral das demandas políticas da época. Para Franca, no entanto, não era o caso de privilegiar a cena como fórum de discussão política, senão de levar o teatro para os lugares onde as pessoas não costumavam frequentá-lo, para o povo. Para que isso fosse possível, criaram a cooperativa Nuova scena (“Nova cena”, em tradução literal), que se apresentava no circuito ARCI, que era próximo do PCI (Partido Comunista Italiano) e promovia apresentações artísticas e culturais nas sedes do partido, em praças, em associações, casas do povo, fábricas, sindicatos, etc. A cooperativa esperava, entrando no circuito, estar menos submetida à censura, uma vez que ele oferecia programas culturais exclusivos para membros assinantes do programa. No entanto, Fo e Rame não tinham amarras ao criticar também o PCI, o que fez com que suas peças sofressem boicotes e censuras com origem também no partido, embora Franca tivesse o apoio e o aval de Berlinguer (membro importante da secretaria desde 1962 e secretário geral do PCI de 1972 a 1984) (FARRELL, 2013).
Em 1970, a companhia se dissolve por divergências internas, influenciadas também pelo clima hostil em relação ao PCI. Franca Rame chegou a rasgar a sua carteirinha de filiação e a devolvê-la pessoalmente a Berlinguer. De toda forma, seja ela, seja Fo (que nunca tinha se filiado ao partido), continuaram próximos ao pensamento de esquerda e fizeram peças cada vez mais “ferozes e impiedosas” (RAME, 2013, p. 14). No mesmo ano fundaram o coletivo teatral La Comune, com o qual montaram Morte accidentale di un anarchico (“Morte acidental de um anarquista”), uma das obras-primas de Fo, ao lado de Mistero Buffo (1969)e de Tutta casa, letto e chiesa (“Bela, depravada e do lar”, de 1977, escrito a quatro mãos com Franca Rame). Morte accidentale di un anarchico denuncia o assassinato de um ferroviário anarquista ocorrido durante um interrogatório da polícia sobre o atentado de Piazza Fontana, ocorrido em 1969, que tinha sido atribuído ao grupo do qual o ferroviário fazia parte, mas que, na verdade (que veio à tona anos depois), tinha sido cometido por neofascistas. O assassinato é disfarçado de suicídio pela própria polícia e Fo acompanha de perto os inquéritos sobre o caso, atualizando o espetáculo quase que diariamente de acordo com o andamento das investigações.
Por Morte accidentale, Fo chegou a ser processado mais de 40 vezes e a ser preso em Sassari, na Sardegna, tendo sido liberado no dia seguinte. Rame (2013) conta que, apesar das frequentes ofensivas da polícia, eles contavam sempre com o apoio do público, em geral numeroso, o que fazia com que fosse mais difícil conseguir prendê-los ou mantê-los presos.
A tensão político-social que a Itália vivia aprofundou-se ainda mais depois do Atentado de Piazza Fontana, considerado por muitos o marco do início dos Anos de Chumbo, que se estenderam até o início da década de 1980 com polarização, violência, luta armada e terrorismo. São também os anos da chamada Estratégia da Tensão, que, segundo Dondi (2015, p. 412),
se traduz na subversão da vida política da nação através de episódios violentos, atos terroristas que falharam ou que se realizaram, seguidos de modalidades narrativas planejadas. Os estrategistas da tensão propõem provocar reações aos atos que criaram e, em qualquer caso, decide-se determinar uma forte mudança de consenso para os partidos que são defensores da ordem ou a favor de novas formas institucionais. A estratégia de tensão abre espaço para mais de uma saída e aqueles que conseguem manter um maior peso político governam seu deslocamento.[3]
Hoje em dia, há um certo consenso (CRAINZ, 2012; DONDI, 2015; SATTA, 2016) de que a Estratégia da Tensão foi impulsionada também pelos Estados Unidos e pela OTAN, como forma de diminuir o crescimento da esquerda, que estava ganhando força também dentro da política institucional, e levar a opinião popular a desejar um governo conservador e restaurador da ordem.
Durante esse período, Rame e Fo continuaram a trabalhar com igual ou mais desrespeito pelos poderosos, a despeito das tentativas de censura e dos perigos aos quais estavam expostos. Franca chegou a ficar sob vigilância constante da polícia (sendo seguida com frequência e tendo inclusive seu telefone grampeado) no início dos anos 1970, também devido à sua atividade militante, se é que é possível separar a sua militância de sua carreira artística. Em 1972 fundou a organização Soccorso Rosso (“Socorro vermelho”, em tradução literal), destinada a lutar pelos direitos dos presos políticos. Em 1973, um grupo de neofascistas, em represália aos seus posicionamentos, agrediu e violentou a atriz, que depois escreveu um de seus monólogos mais famosos, Lo stupro (“O estupro”) sobre esse fato.
A partir de 1974, a Estratégia da Tensão começa a perder força (DONDI, 2015), mas a tensão política continua e dá origem ao Movimento de 1977, que na verdade foi, de forma análoga a 1968, uma onda de manifestações e fatos político-sociais com origens na esquerda, mas em uma esquerda diversa e fragmentada. No entanto, ao contrário de 1968, em 1977 as forças políticas tradicionais e as instituições são fortemente rechaçadas pelo movimento. Por um lado, cresce o terrorismo da extrema esquerda (SATTA, 2016), mas, por outro, cresce também a esquerda pacifista, influenciada pelo movimento feminista (que havia crescido desde 1968), pela luta por direitos humanos, pelo movimento hippie, pelo movimento punk, etc.
É nesse contexto que a RAI convida novamente Fo e Rame para exibirem seus espetáculos na emissora, sempre na forma de episódios. O casal apresenta Mistero Buffo, alvo novamente de polêmicas que chegam a envolver oficialmente o Vaticano (VALENTINI, 1997), mas que dessa vez tiveram um resultado menos dramático do que em 1962. Eles apresentam também Parliamo di donne (“Falemos de mulheres”), um espetáculo dividido em dois episódios que reunia vários monólogos e músicas de personagens femininos do repertório do casal.
Parliamo di donne foi duramente criticado pelo movimento feminista, por falar, na verdade, pouco da condição da mulher e se limitar a dar espaço para personagens femininos, como documentam Valentini (1997) e Hirst (1989). A exceção parecia ser o monólogo Il Risveglio (“O despertar”), o único que tinha sido escrito diretamente para esse espetáculo e sobre o qual falaremos mais adiante.
É nesse contexto que, em dezembro de 1977, Franca Rame estreia, na Palazzina Liberty (edifício que estava abandonado e que foi ocupado pela Comune entre 1974 e 1980, virando sede da companhia)[4], o espetáculo Tutta casa, letto e chiesa, também composto por monólogos para uma só atriz, assim como Parliamo di donne, mas que tinha como temática principal a condição da mulher. Il Risveglio, que tinha feito sucesso na RAI, foi mantido também no novo espetáculo. Tutta casa, letto e chiesa é, até hoje, um dos textos mais montados do casal em todo o mundo (FARRELL, 2013).
[1] Tradução nossa para o termo I giullari del proletariato, frequentemente usado por Fo para se referir aos integrantes da companhia Dario Fo – Franca Rame, especialmente a partir de 1969 (VALENTINI, 1997).
[2] Todas as traduções deste trabalho, a não ser quando indicado o contrário, são de nossa autoria. No original: “Facevamo sempre sconti agli studenti e agli operai però il nostro pubblico restava borghese e non capiva la satira, non si accorgeva di essere preso in giro. Il Teatro Manzoni fu l’ultimo teatro dove recitammo, qui a Milano. C’era tanta gente, c’era tutto quello che ci doveva essere, ma noi eravamo insoddisfatti. Un giorno d’estate mio marito disse: ‘Perché non veniamo via dal teatro normale?’. Mi proponeva quello che avevo sempre fatto con la mia famiglia, per cui mi andava benissimo. Era il 1968.” (FARRELL, 2013, p. 560, ebook)
[3] No original: “La strategia della tensione si traduce nel sovvertimento della vita politica della nazione attraverso episodi violenti, atti stragisti falliti o realizati, seguinti da pianificate modalità di racconto. Gli strateghi della tensione si propongono di provocare reazioni agli atti da loro ideati e, in ogni caso, si puta a determinare un forte spostamento di consensi verso i partiti fautori dell’ordine o a favore di nuove forme istituzionali. La strategia della tensione apre lo spazio a più sbocchi e chi riesce a mantenere un maggiore peso politico ne governa lo spostamento.” (DONDI, 2015, p. 412)
[4] Em 2017, no aniversário de um ano da morte de Dario Fo, a Palazzina Liberty passou a se chamar Palazzina Liberty Dario Fo e Franca Rame, em reconhecimento à importância que a atividade dos artistas, tanto na Palazzina como em outros ambientes, para a vida cultural de Milão (LUCE, 2017).